Durante trinta anos trabalhando com famílias em situação de risco, muitas empobrecidas e com parcos recursos emocionais para enfrentar as contingências, fui acompanhada pela inquietude de pensar que tudo o que eu fizesse não teria o efeito de uma mudança significativa, tamanhas as desgraças que arrebatavam aqueles seres, a meus olhos, tão frágeis, tamanho o estrago que esses acontecimentos perpetravam no corpo-alma de cada um daqueles indivíduos, abalando seus sistemas relacionais. De onde tirar a força para acreditar no potencial de superação de cada ser humano e perceber que caminhos percorrer para participar de uma rede integrada promotora de processos de resiliência?
Os olhos estão sempre abertos, exceto quando se protegem, piscam ou adormecem. Mesmo dormindo, eles procuram. Às vezes, pelo novo. Outras vezes, pelo mesmo. Sempre em busca de fazer com que a experiência faça algum sentido.
Quero refletir sobre o problema de seguirmos nosso caminho colhendo folhas mortas, aprisionados em acontecimentos passados que nos torturam e fazem de nossos dias um eterno re-viver. Que saídas podemos encontrar e quais são os elementos que podem permitir que sigamos em direção ao desconhecido carregando nossos desejos e nossa esperança?
Alguns anos atrás vivi um acontecimento marcante numa farmácia 24 horas. Era madrugada e fui comprar um medicamento para meu filho. Fui surpreendida pela moça do caixa, que afirmou me conhecer. Pedi desculpas, mas, de fato não me lembrava dela. Ela me perguntou se meu nome não era Débora, Deise, alguma coisa assim. Eu disse que me chamava Denise e ela se empolgou. “Isso mesmo! E tinha um Renê, Renan, não sei.” “Sim, o Renê e o Reinaldo. E você, como se chama?” “Jose.” Ela me olhou com um olhar brilhante e um sorriso doce e me disse que, quando criança, passou alguns anos no orfanato da praça Roosevelt. “Você não imagina como foram importantes para mim aqueles sábados em que vocês iam estudar e brincar com a gente. Era o melhor dia da semana. Eu esperava a semana toda pelo sábado.” “Você é que não imagina como é importante para mim ouvir isso. Obrigada”.
Eu tinha 13 anos naquela época. Como poderia imaginar que aqueles momentos compartilhados poderiam fazer diferença na vida daquelas crianças com tanta dor e desamparo na alma? Eu tinha os cabelos longos e as crianças ficavam horas alisando-os sentadas no meu colo. Eu sentia muita tristeza e imaginava que era eu quem me beneficiava de nossos encontros, sempre recebendo tanto afeto e carinho. Eu sabia que saía modificada, mas, o que se passaria com eles?
Eu achava que sua dor tinha o poder de anular qualquer experiência afetiva positiva. Este acontecimento revela um dos desfechos possíveis e indica uma nova perspectiva a partir da qual procurar uma resposta para a indagação que me acompanha há tanto tempo.